
Cabeça de Ultra
O mental nas provas com mais de 100 km
Você sabe o que é uma ultramaratona? Toda prova que ultrapassa os 42,195 km da maratona tradicional recebe esse nome. Elas podem variar em formato e complexidade: as chamadas ultramaratonas curtas, de 50 km; as médias, entre 80 e 100 km; as longas, que passam dos 100 km; além das chamadas “multiday”, realizadas ao longo de vários dias, e as provas por tempo (6h, 12h, 24h), em que o objetivo é percorrer a maior distância possível dentro do tempo limite.
As ultramaratonas variam significativamente em duração, dependendo da distância, do terreno, das condições climáticas e da estratégia adotada por cada atleta. Uma prova de 50 km pode durar entre 4 e 8 horas, enquanto distâncias mais longas podem durar de 20 a 36 horas — ou até mais de 48 horas em percursos especialmente técnicos.
O terreno também varia. Pode ser asfalto, trilha, montanha, deserto, ou uma combinação de todos. Nas trail ultras, o desafio vai além da distância — envolve altimetria severa, longos trechos de isolamento, mudanças bruscas de clima e sono fragmentado. Quanto maior a prova, maior o impacto do componente mental — principalmente pela imprevisibilidade, pela solidão e pelas oscilações emocionais que naturalmente surgem ao longo do caminho.
Em distâncias tão longas, o que se torna decisivo é a força psicológica: a capacidade de manter-se presente, de se autorregular diante das adversidades e de lidar com os próprios pensamentos e emoções sem se perder neles.
Fundamental: o preparo mental começa muito antes da largada.
Ele é construído nos pequenos momentos da rotina de treinos — como naquela manhã fria em que você sai da cama mesmo sem vontade, naquele longo feito sozinho em silêncio, ou naquele instante em que você se pergunta “o que eu tô fazendo aqui?” e, em vez de evitar essa pergunta, decide escutá-la, respirar fundo e seguir mesmo assim. Como afirma Antonelli (2020), “o treino mental contínuo, realizado desde a preparação, melhora o desempenho, a tolerância ao desconforto e a tomada de decisão durante as fases críticas da prova.”
O corpo, treinado por meses, responde. Mas é a mente que negocia com a dor, acolhe a dúvida, sustenta o ritmo quando a motivação oscila. Weinberg e Gould (2016) destacam que atletas de endurance com maior preparo psicológico demonstram mais consistência de performance, melhor autocontrole sob pressão e maior capacidade de recuperação.
Como vocês sabem ou podem imaginar, nestas provas ultralongas, a chance de algo sair do controle é praticamente garantida. Vai faltar energia. Vai surgir dor. Talvez venha o enjoo, o frio, a fome, a sede , o sono, o calor ou simplesmente o tédio. Quem nunca no meio do treino, pensou em voltar para casa para um abraço, um banho ou um cobertor quentinho? E em meio a tudo isso, a cabeça vai tentar convencer você a parar. O desconforto é grande. Provas assim trazem experiências emocionais únicas. Você vai sentir coisas que talvez nunca tenha sentido. Vai se surpreender com o próprio corpo — para o bem e para o mal. Vai querer desistir. Vai se emocionar. Vai rir sozinho, talvez chorar. E tudo isso faz parte. O segredo não está em evitar essas sensações, mas em saber acolhê-las e seguir mesmo assim. Terry Orlick (2015), referência em excelência esportiva, destaca que os atletas mais bem-sucedidos são aqueles que desenvolvem estratégias mentais conscientes para manter o foco, a calma e a resiliência em meio ao caos.
Use e abuse dos treinos, e encare cada desconforto como um pequeno “teste” emocional. Observar o que você sente e pensa quando o corpo cansa, quando o clima não ajuda ou quando tudo parece dar errado. E ao invés de fugir desses momentos, perceba, atente-se a eles. Um treino sob chuva, um treino solitário no escuro, uma subida dura quando o corpo já pede descanso — tudo isso pode ser oportunidade de fortalecimento psicológico.
Durante o ciclo de preparação, é importante também se conectar com os motivos que te movem. Um paciente que acompanhei em sua primeira prova de ultra, levou no bolso vários papeizinhos dobrados com frases escritas à mão. Algumas inclusive eu escrevi, outras dos seus filhos, esposa e amigos. Cada um respondia a uma pergunta que ele se fez durante os treinos mais duros: “Por que estou fazendo isso?” “Para quem estou fazendo isso?” “O que essa prova representa para mim?” ou eram frases motivacionais.
Quando o corpo pedia para parar, ele tirava um papelzinho e lia. Alguns diziam: “Por mim”, “Força papai”, “Porque quero provar que posso”, “Porque amo estar aqui” , “desistir jamais’. Depois, ele me contou: “Parecia um biscoito da sorte, mas com um significado real”. Esses pequenos lembretes se tornaram grandes âncoras. Nos momentos de crise, a respiração pode ser uma delas. Voltar ao corpo, sentir os pés no chão, respirar fundo. Orlick (2015) reforça que a atenção plena e o controle da respiração ajudam a reduzir a ansiedade e a manter o foco nas fases críticas da performance. A respiração profunda e ritmada ativa o nervo vago — principal componente do sistema parassimpático — ajudando a reduzir a frequência cardíaca, acalmar o corpo e restaurar o equilíbrio emocional (Porges, 2011).
Outra prática fundamental é a visualização. Imaginar os trechos difíceis da prova e antecipar sua resposta emocional ajuda o cérebro a se familiarizar com o que está por vir. Quando o corpo já reconhece aquele cenário, mesmo que só na imaginação, o impacto emocional é menor. Praticar mentalmente como você vai respirar, o que vai dizer a si mesmo, como vai manter o ritmo, tudo isso é válido como um ensaio.
E no dia da prova, pense a jornada em blocos. Não encare os 100 km como um todo. Vá ponto a ponto, estação a estação, trecho a trecho. Isso mantém o cérebro focado em decisões pequenas e possíveis.
Tenha também suas frases de apoio na ponta da língua: “Já passei por isso antes”, “Posso ir mais um pouco”, “Isso vai passar”, “Estou no meu ritmo”, “Não estou aqui por acaso”. E mantenha seus porquês por perto, literalmente ou simbolicamente. Eles vão lembrar você que o esforço faz sentido.
Aprenda também a escutar o corpo com atenção. Se surgir algo estranho, escute. Se for suportável, negocie. Se for um limite real, respeite. Saber parar também faz parte do autodomínio. Ultra não é sobre heroísmo. É sobre presença, escuta e responsabilidade com o próprio processo.
Para você que já correu ou que sonha em correr uma prova dessas, espero que este texto tenha tocado sua mente e seu coração. Correr ultras, é mais do que atravessar uma distância absurda — é atravessar a si mesmo. É lidar com pensamentos sabotadores, reconhecer seus próprios limites, superar o cansaço mental e reencontrar, dentro de você, razões profundas para continuar.
A cabeça de ultra se constrói com treino, consciência e propósito. E quando a linha de chegada finalmente aparece, você sabe: não foi só o corpo que venceu. Foi a sua história, sua mente e tudo aquilo que te move.
Quanto mais você se prepara mentalmente, menos refém se torna do imprevisto — e mais dono da sua jornada. Quem se aventura?
Grande Abraço ,
Silvia Schreer
Referências
Antonelli, M. I. (2020). Psicologia do Esporte: princípios e aplicações. Editora Manole.
Orlick, T. (2015). In Pursuit of Excellence: How to Win in Sport and Life through Mental Training (5th ed.). Human Kinetics.
Weinberg, R. S., & Gould, D. (2016). Foundations of Sport and Exercise Psychology (6th ed.). Human Kinetics.
Porges, S. W. (2011). The Polyvagal Theory: Neurophysiological Foundations of Emotions, Attachment, Communication, and Self-regulation. W. W. Norton & Company.