
Doping, ego e a busca por validação: o que está por trás da performance a qualquer custo?
Hoje em dia, não é raro ouvir relatos — nem sempre públicos — sobre o uso de substâncias para melhorar o desempenho esportivo. E não estamos falando só de alta performance/ profissionais ou grandes competições. Esse comportamento tem se espalhado cada vez mais entre praticantes amadores e até aqueles que correm ou treinam por lazer. A pergunta que fica é: por que tanta gente tem cruzado essa linha?
Um dos motivos passa, sem dúvida, pelo ego. Em um cenário onde todo mundo parece correr mais, performar melhor, ter o corpo ideal e mostrar tudo isso online, a régua de valor pessoal começa a se basear na comparação. E quando o valor está fora — nos olhos dos outros, no feed, no pódio e nas conquistas dos outros — a prática esportiva deixa de ser um espaço de prazer e vira uma arena de competição entre egos.
O treino, que deveria aliviar a mente, acaba gerando tensão. A corrida, que era liberdade, vira cobrança. E é aí que muita gente começa a cogitar atalhos.
A psicologia clínica do esporte já mostrou que atletas com uma orientação mais voltada para o ego, ou seja, que se avaliam comparando o próprio desempenho com o dos outros, têm maior propensão ao uso de doping (Nicholls et al., 2021). E não só doping: o uso abusivo de suplementos ou “substâncias com super power” costuma ser o primeiro passo. Numa lógica em que “vale tudo” para vencer — ou para parecer que está vencendo — o risco de decisões impulsivas aumenta.
Agora, somado a isso, tem um fator poderoso: as redes sociais. A gente é bombardeado, todos os dias, com imagens de medalhas, treinos duros, corpos sarados e resultados impressionantes. Quantas pessoas que você mesmo conhece que treinam e postam o resultado do treino? Fotos de telas de relógios….e por aí vai.
A dopamina, neurotransmissor ligado ao prazer e à motivação, é ativada em nosso cérebro sempre que recebemos recompensas sociais, como curtidas ou elogios — o que ajuda a explicar por que a exposição e a validação digital se tornaram tão viciantes e, em muitos casos, disfuncionais. (Montag, C., & Reuter, M. (2017))
Mas o que não aparece são os bastidores: as dores, as pausas, os dias ruins, a exaustão emocional a abdicação de muitas coisas , daqueles que buscam vencer desafios pessoais. E quando tudo o que vemos são conquistas, é fácil acreditar que estamos ficando pra trás. A validação virou moeda de troca. O like virou aplauso. E a linha entre o saudável e o exagerado vai ficando cada vez mais tênue.
Essa pressão por resultados rápidos, alimentada por uma cultura de comparação e imediatismo, distorce todo o propósito. E quando a vitória se resume a performar melhor que o outro — seja numa prova ou numa postagem — o risco de ultrapassar limites éticos e físicos se torna ainda maior. Dados da literatura internacional e nacional mostram que essa preocupação é real. Um estudo europeu estimou que 1,6% de atletas recreativos já recorreram a substâncias proibidas, e no Brasil, pesquisas apontam que o uso de anabolizantes chega a 12% entre corredores amadores e a até 35% entre atletas de esportes de combate em algumas regiões (Scielo, 2003; Acervo+ 2022; Uniceub, 2021).
E não é só sobre ética. É também sobre saúde. O doping compromete o organismo, a mente e, principalmente, o prazer pela prática esportiva. Aquilo que deveria ser espaço de autocuidado, expressão e superação pessoal passa a ser fonte de cobrança, ansiedade e comparação. O que era pra fazer bem, começa a machucar por dentro.
E vale lembrar: seguir um plano, buscar performance, sonhar com uma conquista… tudo isso pode exigir renúncias. Dormir mais cedo, evitar excessos, deixar de sair ou de estar com a família, filhos ou amigos.
Sim, tem momentos em que a gente se pergunta se vale a pena. Mas quando o propósito é verdadeiro, essas escolhas param de parecer sacrifícios. Elas viram parte da construção de algo maior. Abrir mão de algo hoje pode ser, na verdade, um compromisso com a versão de si mesmo que você está tentando se tornar.
Por isso, é importante resgatar o que de fato importa: o porquê de tudo isso. Se o que você busca é só ser visto, a cobrança nunca vai cessar — sempre vai ter alguém fazendo mais, mostrando mais. Ou ao menos, você vai achar isto. Mas se o que te move é o seu próprio crescimento, a sua conexão com o esporte, o seu bem-estar e desafio pessoal, então cada passo vale. Porque aí, a conquista é sua. Genuinamente sua. O processo todo se torna mais leve, com menos cobrança por pódios e sim por objetivos pessoais alcançados.
No fim das contas, a motivação mais sólida nasce de dentro. Não está nas redes ou nos olhos dos outros. Está na consciência tranquila de que o caminho que você escolheu respeita quem você é, o seu corpo e os seus valores. E esse tipo de conquista ninguém pode tirar de você. Vale a reflexão.
Abraço,
Silvia Schreer
Referências –
NICHOLLS, A. R. et al. An ego-oriented motivational climate is associated with attitudes towards doping in athletes. Journal of Sports Sciences, v. 39, n. 1, p. 63–69, 2021.
SCIELO. Controle de dopagem no esporte brasileiro: análise dos dados de 2003. Revista Brasileira de Medicina do Esporte, São Paulo, v. 9, n. 6, p. 403–409, 2003.
LIMA, R. M. et al. Uso de esteroides anabolizantes por corredores de rua amadores. Acervo Mais, São Luís, v. 2, n. 14, 2022.
UNICEUB – Centro Universitário de Brasília. Uso de substâncias para fins de performance entre atletas de esportes de combate no DF. Anais do Congresso de Iniciação Científica, Brasília, 2021.
MONTAG, C.; REUTER, M. Internet addiction: neuroscientific approaches and therapeutical implications including smartphone addiction. Cham: Springer, 2017.